NOTA PÚBLICA DE REPÚDIO À DESISTÊNCIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DE GOIÁS NA AÇÃO CIVIL PÚBLICA SOBRE CÂMERAS CORPORAIS EM FARDAS POLICIAIS
As entidades e movimentos sociais signatários desta nota, comprometidos com a defesa dos direitos humanos e a promoção da justiça, vêm a público manifestar seu veemente repúdio à decisão do Procurador-Geral de Justiça do Ministério Público de Goiás, Cyro Terra Peres, de desistir da Ação Civil Pública que buscava garantir o uso obrigatório de câmeras corporais por policiais militares no estado de Goiás.
O Contexto da Decisão e seus Impactos
A referida Ação Civil Pública, proposta em 2022 por promotores do próprio MP-GO, visava coibir o alto índice de letalidade das operações da Companhia de Policiamento Especializado (CPE) de Anápolis, fato amplamente documentado e que motivou a exigência do uso de câmeras a exemplo de estados como São Paulo e Rio de Janeiro, onde a eficácia desses equipamentos na redução da violência policial é comprovada.
A decisão de desistência, anunciada em 22 de outubro de 2025 pelo Procurador-Geral Cyro Terra Peres, sob o argumento de que o Estado já dispõe de outros mecanismos de controle e que houve uma suposta redução da letalidade policial, representa um grave retrocesso. Tal posicionamento ignora a importância fundamental das câmeras corporais como instrumento de transparência, responsabilização e proteção tanto para a população quanto para os próprios agentes de segurança. A alegação de que o aplicativo Métis e a redução de 28% na letalidade policial em 2024 seriam suficientes para substituir a necessidade das câmeras é, no mínimo, questionável e carece de uma análise aprofundada sobre a natureza e a efetividade desses mecanismos em comparação com a prova audiovisual incontestável fornecida pelas câmeras.
Em um dos estados com as maiores taxas de letalidade policial do país, esta decisão representa um grave retrocesso e uma afronta ao direito à vida, à transparência, à tranquilidade, bem estar da sociedade e à justiça. Diversos casos emblemáticos de violência policial só foram esclarecidos graças a filmagens feitas pela própria população e/ou imagens de câmeras de segurança, revelando, em muitos deles, execuções forjadas como confrontos e trocas de tiros a exemplo dos casos do COD, da forja da PM (Senador Canedo), do morador de rua Divair Nunes, do trabalhador autônomo Henrique Alves, de Wilker Darcian (Trindade), a maioria ocorrida em plena luz do dia, entre outros.
Ao abdicar da prerrogativa de defender um instrumento essencial de controle e transparência, o Ministério Público de Goiás (MPGO) envia uma mensagem preocupante à sociedade: a de que não tem interesse na verdade e no controle externo da atividade policial e qualificação de seus agentes, que devem respeitar preceitos legais e o bem comum. E acena para as forças de segurança que abusos que produzem os altos índices de letalidade policial e ações assemelhadas às práticas de milícia e grupos de mercenários podem não ser investigados e punidos com rigor.
A Realidade da Violência Policial em Goiás: Casos Emblemáticos e Dados Alarmantes
A desistência do MP-GO é ainda mais preocupante à luz do histórico de violência policial e letalidade em Goiás, um dos estados com as maiores taxas de mortes decorrentes de intervenção policial no país. A sociedade goiana tem sido testemunha de reiterados abusos, muitos dos quais só vêm à tona graças a filmagens da própria população, conforme já mencionado, e à coragem de testemunhas dos crimes e familiares das vítimas, muitas vezes ameaçados e constantemente intimidados pelas forças policiais envolvidas nos crimes.
Adicionalmente, a situação em Anápolis é particularmente crítica. A cidade concentrou 42,4% das mortes em confrontos com a polícia, em Goiás, entre 2020 e 2022, um índice alarmante que deveria, por si só, justificar a manutenção e o fortalecimento de todas as medidas de controle da letalidade. O próprio Ministério Público já denunciou policiais militares de Anápolis por abuso de autoridade e falsidade ideológica em registros de ocorrência, reforçando a urgência da fiscalização.
Além disso, a Operação Malavita, deflagrada em outubro de 2024, expõe o envolvimento nefasto de policiais com o crime. O Ministério Público de Goiás, que também participou da ação, ofereceu denúncias criminais ao Poder Judiciário (1ª Vara Criminal de Anápolis) contra um total de 19 réus (13 policiais militares, 4 policiais civis e 2 não policiais) por envolvimento com o tráfico de drogas em Anápolis.
Não podemos esquecer das chacinas que marcaram o estado, citando alguns exemplos mais emblemáticos, e que evidenciam a gravidade da violência institucional:
Chacina do Solar Bougainville (2018):
Em 23 de abril de 2018, em Goiânia, quatro jovens foram mortos em uma ação policial e um adolescente, João Vitor Mateus de Oliveira, de 14 anos, continua desaparecido. As famílias relatam que os jovens foram abordados enquanto jogavam videogame. O MP-GO chegou a denunciar policiais militares pelo caso, evidenciando a gravidade e a controvérsia da ação.
Chacina do Jardim das Aroeiras (2019):
Em 25 de março de 2019, também em Goiânia, três adolescentes – Pedro Henrique Souza Santos, Walisson Barros dos Santos e Maycon Ferreira Conceição da Silva – foram mortos por policiais militares do Grupamento de Intervenção Rápida Ostensiva (GIRO). Apesar da alegação de confronto, um laudo pericial desmentiu a versão policial. Os cinco policiais envolvidos foram condenados a 7 anos de prisão em regime semiaberto em abril de 2025.
Chacina da Chapada dos Veadeiros (2022):
De acordo com a denúncia do MPGO, quatro homens foram executados com 58 tiros quando já estavam rendidos. O crime teve grande repercussão. Testemunhas tiveram que ser incluídas em programas de proteção e familiares sofreram intimidação pelos policiais militares, que tiveram sua prisão preventiva decretada por esse motivo. Dois policiais militares foram condenados e cinco foram absolvidos pelo júri popular.
Quem mais sofre com esta lamentável escolha do MPGO são, como sempre, as populações pretas e periféricas, e as minorias sociais, que, historicamente e rotineiramente, são os alvos preferenciais da violência institucional e da ausência de políticas públicas comprometidas com o respeito a direitos e garantias fundamentais.
É importante dizer ainda que foi aprovada, por unanimidade, a proposta de implantação de câmeras nos uniformes dos policiais militares, civis e penais na Conferência Municipal de Goiânia de Direitos Humanos, realizada no dia 29 de setembro de 2025, e na 5˚ Conferência Estadual de Direitos Humanos, em 11 de outubro de 2025, apresentada pelos movimentos sociais, demonstrando o clamor da sociedade civil organizada em defesa de medidas efetivas de controle da letalidade policial e de políticas públicas com participação social para a segurança pública em Goiás.
Dessa forma, o Ministério Público de Goiás (MPGO) apequena-se diante de sua missão constitucional de defesa da sociedade e da legalidade e revela, para quem ainda tinha dúvidas, sua subserviência ao governador do Estado, que recusa-se a adotar mecanismos de controle da letalidade policial como a instalação de câmeras nos uniformes dos policiais de comprovada eficiência nos estados que a adotaram.
O estado de Goiás merece um Ministério Público independente, comprometido com a verdade e com a vida, conforme a previsão legal do art. 129 e seguintes da Constituição da República, não uma instituição que se curva diante do poder.
Assinam
Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) Núcleo Goiás
Comitê de Direitos Humanos Dom Tomás Balduino
Cerrado Assessoria Jurídica Popular (AJP)
Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares do estado de Goiás (Renap)
Coletivo Mães Pela Paz
Comissão Dominicana de Justiça e Paz do Brasil
Pastoral Carcerária Nacional
Associação de Familiares de Pessoas Privadas de Liberdade no estado de Goiás (AFPL)
Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR) Goiás
Movimento de Trabalhadores e Trabalhadoras por Direitos (MTD) Goiás
Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim)
Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Criminalidade e Violência (Necrivi) da UFG
Movimento Brasil Popular (MBP)
Organização Negra e Periférica Carolina de Jesus (GO)
MST
Panóptico
União das Mulheres Indígenas de Goiás
Núcleo de Estudos e Pesquisas em Direitos Humanos (NDH) da UFG
Centro Palmares de Estudos e Assessoria por Direitos
Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de Goiás (SindJor)
Crimideia - Grupo Goiano de Criminologia
Associação dos Geógrafos do Brasil (AGB) Goiás
Instituto Devir Social
Instituto Brasil Central (Ibrace)
Comissão Pastoral da Terra (CPT) Goiás
Pastoral de Rua Dom Fernando
Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR) Goiás
Fórum Goiano em Defesa dos Direitos, da Democracia e da Soberania
Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH) Goiás
Coletivo Pretas de Angola
Plataforma Dhesca

